REFLEXOS E REFRAÇÕES DE UMA VERDADE NUA E CRUA: UMA ANÁLISE DIALÓGICA DA CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE DIZER DE ADELAIDE CARRARO EM EU E O GOVERNADOR (1963)
Adelaide Carraro; Projeto de Dizer; Verdade nua e crua; Arquitetônica; Relações dialógicas.
Ao decidir se tornar criadora de narrativas e assinar mais de quarenta obras em vida, Adelaide Carraro, uma das escritoras malditas do século XX ー epíteto difundido especialmente no contexto da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) para se referir àqueles que produziam arte contra o regime autoritário ー, marcou a sua trajetória literária por propagar aquilo que julga ser a verdade nua e crua sobre problemas sócio-históricos do Brasil. Atingindo, de modo ambivalente, o reconhecimento popular acerca de seus títulos e o desprestígio por parte de críticos e jornalistas de sua época, Carraro lançou-se autora de muitos romances de traços autobiográficos, nos quais assume a posição axiológica de heroína das narrativas que compõe, algo que demarca o seu estilo composicional. Como um exemplo de tais textos, Eu e o Governador (1963), trabalho inaugural de Adelaide, desenvolve-se sob o enfoque de uma narradora-personagem e protagonista que versa acerca dos seus dilemas íntimos enquanto jovem ex-tuberculosa e pobre na cidade de São Paulo, espaço onde experiencia acontecimentos traumáticos que a fazem questionar os estigmas sociais e o descaso governamental direcionados a essa população. Nesse sentido, esta pesquisa intenta analisar dialogicamente a construção do projeto de dizer de Adelaide Carraro no referido objeto estético, a fim de atingir uma compreensão aprofundada a respeito das linhas verbo-ideológicas que compõem a intenção discursiva da artista, no que tange às escolhas dos elementos arquitetônicos da forma, do conteúdo e do material e à definição dos posicionamentos axiológicos agenciados na elaboração do seu enunciado. Para tanto, o corpus investigativo aqui trabalhado é encorpado não só por enunciados presentes no plano romanesco, como também pelo correlacionamento de outros materiais enunciativos, oriundos de jornais e revistas, entre outros, os quais integram um conjunto de textos relacionados ao tema explicitado, dados que nos auxiliam a construir uma interpretação profícua acerca do fenômeno pesquisado. Neste ínterim, alicerçamos os fios condutores desta dissertação ao fazer científico da pesquisa qualitativa de caráter interpretativista e alinhamos nosso escopo teórico-metodológico aos pressupostos da Linguística Aplicada, enquanto ciência indisciplinar, transgressiva e crítica. Além disso, nesta pesquisa, coligamo-nos às postulações do Círculo Bakhtiniano, composto por pensadores como Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volóchinov, que comportam os fundamentos epistemológicos e filosóficos em torno da abordagem dialógica da linguagem. Logo, é possível depreender que a arquitetônica adelaideana, isto é, a maneira com a qual a autora-criadora organizou o seu primeiro livro, é constituída por índices valorativos que sinalizam uma atitude avaliativa da enunciadora frente aos fatos vividos por ela, transpostos e, assim, representados no plano romanesco, a partir da intersecção entre reflexos e refrações dos mundos da arte e da vida. Ademais, por revelar, em seu texto, sentidos ideologicamente edificados em relação a si mesma e aos outros da interação discursiva, a enunciadora lidou com diversas apreciações em torno de sua imagem e de seu enunciado, o que evidencia os multidirecionamentos e as reverberações axiológicas de sua produção imersa na realidade concreta.