Entre Rastros, Ruínas E Relações Dialógicas: Paisagem Enunciativa E O Engenho Discursivo De Sertanizações
15. PALAVRAS-CHAVE EM PORTUGUÊS: Paisagem enunciativa; Linguística Aplicada; Mundizações; Sertão/Nordeste/Semiárido
RESUMO EM PORTUGUÊS:
Walter Benjamin já discutia que a escritura e a impressão, com o advento da modernidade, fizeram com que as “palavras ligeiras” — outrora verticalizadas, eretas, em riste, na voz,
nas bocas, nos balbucios e no fervor da oralidade — “descansassem”, “se deitassem”, se prostrassem e se recolhessem aos miolos de um livro, de uma carta, de um papel, ao mesmo tempo em que se obliteravam no “repouso oblíquo das escrivaninhas”, no silêncio das bibliotecas. Mas o filósofo também nos advertiu que, lentamente, nas dobras e rupturas do tempo-espaço, as palavras — retiradas do descanso e novamente gritadas nas ruas, lidas em verticalidade, disputadas no espaço urbano, lançadas ao léu-vertical, ao outro — passaram a anunciar modos de vida outros, relações sociais outras, práticas de comércio de uma sociedade burguesa, mercantil, assentada no fetiche do econômico. As palavras, portanto, voltaram a ganhar as ruas! Tal qual “uma nuvem de gafanhotos”, passaram a ocupar a paisagem, o horizonte, a vertical, o excedente de visão dos sujeitos; assim, ao mesmo tempo em que um novo mundo era anunciado e disputado, ele também era produzido, construído e erigido pela linguagem, pois o espaço e as cidades são construtos da ordem do discurso. Essa é uma paisagem que, por ser linguagem, tem o poder de fazer; é, portanto, uma paisagem-enunciativa, povoada por enunciados concretos. É isso que defendo enquanto tese neste empreendimento investigativo. Desta feita, proponho problematizar e analisar que sentidos são indexados e criados na/pela paisagem enunciativo-discursiva das cidades de Delmiro Gouveia, Olho D’Água do Casado e Piranhas (AL), e que mundizações, animacidades e sertanizações produzem sobre essas cidades do alto sertão alagoano. Assim, ao entender o Nordeste como uma invenção e o sertão como seu correlato sinonímico, busco compreender e problematizar a participação dessas paisagens enunciativas na tematização do próprio território mediante os rastros e as ruínas que estabelecem junto à historicidade. O corpus da pesquisa foi gerado por meio de exercícios etnocartográficos processuais que objetivaram capturar, em fotografações, os enunciados situados na paisagem das referidas cidades, especificamente aqueles que possuem como suposto referente e conteúdo temático Nordeste/sertão/semiárido ou que contribuíssem para pensar as cidades e o território. Dado o exposto, meu percurso epistemológico se ancora em áreas dos estudos linguístico-discursivos, como paisagem linguística (Blommaert, 2023; Shohamy e Gorter, 2009) e Linguística Aplicada, especificamente em uma Linguística Aplicada crítico-transgressiva e radicalmente indisciplinar (Moita Lopes, 2013; Fabrício, 2017; Santos Filho, 2024; Pennycook, 2010, 2024), que não busca estabelecer explicações sobre um dado no mundo, mas produzir contestações, desmanchar cenas, dessacralizar, desaprender, constranger o que se pretende natural e essencial, assim como gerar riso, imaginações teóricas e problematizar a imbricação entre práticas discursivas e sociais que se movem e afetam dialogicamente. Do mesmo modo, em perspectiva de indisciplinaridade radical, procedo em cópulas epistêmicas com a pedagogia das cidades, a historiografia dos espaços em Albuquerque Jr. (2009, 2011, 2014), a geografia em Marc-Besse (2014) e Petit (2024), e os estudos da linguagem em Bakhtin (2011, 2016, 2017) e Volóchinov (2018, 2019). Dessa forma, assinalo que é dos estudos do Círculo que deriva o procedimento metodológico de análise: uma leitura/análise enunciativo-discursiva com fulcro naquilo que se consolidou enquanto Análise Dialógica do Discurso (ADD). Em diálogo com os exercícios etnocartográficos processuais, problematizo minha própria imbricação com o objeto de pesquisa, minha responsividade e minha palavra outra em cotejo com os enunciados na paisagem, procedendo à análise dos enunciados segundo três dimensões: (1) a esfera da atividade humana na qual emergem; (2) a identificação e problematização dos gêneros do discurso; e (3) os arranjos estilísticos. Abro parêntese para destacar que, em postura indisciplinar, adenso a leitura com uma abordagem interativa da linguística textual, de modo a, no copular das teorias, problematizar as “entranhas estruturais do enunciado”, a textualidade em seus aspectos globais, e investigar sua participação e intervenção verbo-ideológica no mundo. Os resultados preliminares apontam que há na paisagem enunciativa das cidades rastros da tematização de um “sertão” que parece não ter passado, vinculado à matriz discursiva hegemônica que o instituiu como seco, pobre, de pouco, mas também como um modelo de sociedade estamental, assentada em mitos como Lampião, que reverbera indícios de saudosismo tanto pela “macheza” criada e indexada quanto pela
própria sociedade estamental. Há, portanto, um engenho discursivo de sertanizações, em orientação “centrípeta”, que se enreda em cada enunciado na paisagem e parece formar um todo, massificando os sentidos já estratificados sobre o território.