EXPERIÊNCIAS DE PERDA DE UM FILHO COM CÂNCER INFANTIL:
UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL
luto materno; câncer infantil; fenomenologia; cuidado; morte.
O fenômeno do luto é reconhecido como um processo singular e subjetivo decorrente do rompimento de uma relação (Bowlby, 1985/2004; Franco, 2009; Kovács, 1992; Parkes, 1972/1998). Nos casos de morte, a literatura assinala o papel da pessoa perdida, bem como as causas e circunstâncias da perda como fatores que interferem neste processo (Bolze & Castoldi, 2005; Bowlby, 1985/2004; Brandão, 2009; Gesteira, Barbosa & Endo, 2006). Neste sentido, a morte de crianças decorrente do câncer (segundo lugar no ranking da mortalidade infantil) reflete um desfecho precoce da vida, comumente após um intenso e doloroso processo de hospitalização, que pode provocar forte impacto na vida da mãe (INCA, 2008; Instituto 4 Estações, 2004). Esta figura, a quem foi confiado socialmente, por excelência, o lugar de cuidado na dinâmica dos papéis parentais, tem sido prioritariamente eleita para assumir a maior parte das responsabilidades durante a situação de adoecimento do filho (Beck & Lopes, 2007; Wegner & Pedro, 2010). Reconhecendo a relevância das informações acima apresentadas, esse estudo tem como objetivo compreender a experiência de mães que perderam um filho em decorrência de câncer infantil, aproximando-se dos sentidos pessoais desta vivência por meio da perspectiva fenomenológico-existencial. Sustentada teórica e metodologicamente pela hermenêutica heideggeriana, esta pesquisa segue os moldes de um delineamento qualitativo, com enfoque exploratório e compreensivo (Minayo, 2000). Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRN e contará com a participação de quatro mães. No tocante ao percurso já empreendido, foram realizados os primeiros contatos institucionais com o Grupo de Apoio à Criança com Câncer – GACC/RN e a Casa de Apoio à Criança com Câncer Durval Paiva - CACC, duas organizações não governamentais selecionadas em decorrência da referência no atendimento à criança com câncer na cidade do Natal – RN e da disponibilidade de projetos de acompanhamento a familiares enlutados. Assim como estava previsto, nesta fase preliminar da pesquisa foi possível: agendar encontros individuais com os profissionais da equipe técnica de cada instituição que tinham maior envolvimento com o público-alvo da pesquisa; iniciar a caracterização do campo de estudo, por meio de um mapeamento do número total de mães enlutadas de cada instituição, nos últimos três anos; e, finalmente, elaborar uma pré-seleção de mães que se adequavam ao perfil de participantes da pesquisa, de acordo com os critérios de inclusão (idade igual ou superior a 18 anos; mãe de criança que tinha enfrentado no mínimo seis meses de tratamento oncológico antes de morrer e indicação por profissional pertencente à equipe técnica de instituição de atendimento à criança com câncer). Após a conclusão desta etapa, obteve-se a anuência da primeira participante que, decorridos 1 ano e 3 meses da morte da filha, foi convidada e concordou em participar desta pesquisa. À luz de um entendimento fenomenológico da experiência enquanto dimensão existencial do vivido, e da linguagem como função privilegiada que organiza essas situações em formas expressivas singulares (Dutra, 2002), utilizou-se como método a “narrativa” (Benjamim, 1994), com enfoque vivencial (Silva & Trentini, 2002), consoante o referencial teórico proposto. A entrevista foi realizada na instituição de apoio em sala com condições favoráveis à realização de tal procedimento de pesquisa, áudio gravada e transcrita, resultando no texto de referência para análise. A proposta de análise da narrativa compreende as seguintes etapas: leitura do texto de referência; delimitação de unidades de sentido emergentes; composição de eixos temáticos a partir de tais unidades e síntese compreensiva da experiencia. A participante da pesquisa, Maria (nome fictício da entrevistada), tem 37 anos de idade, nível de escolaridade fundamental completo e renda mensal de um salário mínimo. É uma mulher casada que teve seis filhos, dentre eles Júlia (nome fictício da criança) que foi diagnosticada com leucemia quando estava prestes a completar cinco anos e, após quatro anos e oito meses de tratamento, faleceu aos nove anos de idade. Compreendendo a narrativa produzida no encontro entre narrador e ouvinte como uma história que oferece uma totalidade descritiva, afetiva e significativa de uma determinada experiência, é possível vislumbrar, neste momento, horizontes de análise que se desvelam em três grandes eixos temáticos: 1) História prévia, adoecimento infantil e suas repercussões; 2) A rede de apoio e o cuidado e 3) A perda e o depois: enfrentamento e significação. O primeiro eixo temático contempla a relação prévia que esta mãe estabelecia com a filha, bem como o impacto do diagnóstico na vida desta mulher. A narrativa da mãe demonstra intenso envolvimento com a filha, cujo cuidado exercia de forma exclusiva, o que foi intensificado após o acontecimento da doença. Frente ao diagnóstico, ela escolhe dedicar-se integralmente ao acompanhamento do tratamento da filha, demonstrando um posicionamento autêntico no que se refere à autoria do cuidado (Critelli, 1996). Por outro lado, o exercício do mesmo sugere um modo-de-ser confuso e, por vezes, indissociado da filha, refletindo um modo de preocupação susbstitutivo (Heidegger, 1927/2005a). O contato com a doença e o seu progressivo agravamento evidenciam-se como episódios que redimensionam o sentido e o significado da morte, retirando Maria do estado superficial e aparente de segurança que prevalece na cotidianidade e aproximando-a da ontológica sensação de desamparo humano, confirmando, assim, a frágil, inóspita e precária condição da vida (Pompeia & Sapienza, 2011; Spanoudis, 1981). Ainda assim, rememorada a totalidade de impressões, o tratamento é concebido como um período triste e feliz, indicando abertura de sentidos para os ganhos e perdas da experiência. O segundo eixo temático versa sobre os vínculos relacionais estabelecidos durante o período de adoecimento e tratamento. Neste período, confirma-se a aproximação majoritária dos parentes e destacam-se as marcas positivas deixadas pelos profissionais de saúde. Partindo da perspectiva heideggeriana de que qualquer forma de adoecimento manifesta-se como uma limitação do exercício de cuidar de si mesmo e dos outros (Nogueira, 2008), requerendo, portanto, suporte externo, pode-se afirmar que a equipe profissional de saúde que acompanhou o caminho do adoecimento da filha de Maria propiciou às duas a existência de encontros genuínos, nos quais houve disposição para ultrapassar o discurso tecnocientífico e alcançar as necessidades concretas do sujeito (Ayres, 2004). O último eixo temático agregou os efeitos da experiência do “morrer” de uma filha com câncer. A princípio, sobressaem-se testemunhos e atitudes de respeito e aceitação comungadas pela equipe de saúde. Este modo diferenciado de estar diante da morte, que supera a exigência de regras e protocolos, mostra-se como uma resposta diretamente vinculada à condição ontológica de ser-com-o-outro (Sá, 2010). Por fim, constata-se que Maria mantém a possibilidade de construir diálogos autênticos sobre a ausência de sua filha com um círculo restrito de pessoas. A despeito do intenso sofrimento, pode-se perceber que o adoecimento e a morte da filha ressignifica a vida desta mãe. Alguns sentidos se reafirmam, como o lugar central que a maternidade ocupa em sua existência; outros, entretanto, parecem se desvelar a partir da valorização da vida, prevalecendo o sentimento de esperança e a crença nas possibilidades da existência. Àqueles que precisam enfrentar a perda de um filho, parece não haver o que dizer. Neste caso, quando o silêncio se sobressai diante da palavra, Heidegger afirma que embora ausente de verbalização, “o discurso da consciência sempre e apenas se dá no silêncio” (Heidegger, 1927/2005b, p.59). Espera-se que os resultados decorrentes das próximas experiências possam ser agregados, de forma que seja possível ampliar a compreensão dos significados e sentidos atribuídos ao fenômeno da morte de um filho por câncer infantil.