O CÂNTICO DOS CANTICOS EM TRADUÇÃO
Cântico dos Cânticos. As semioses da tradução. Tradução e historicidade
Esta dissertação estuda traduções do Cântico dos Cânticos ( שיר השירים , Shir haShirim,
conhecido também em português como os Cantares de Salomão) produzidas em diferentes conjunturas sociais, observando especialmente as divergências entre elas, no que diz respeito ao erotismo presente no poema, e tentando decifrar as suas prováveis razões discursivas. O Cântico dos Cânticos é um livro poético de mais de uma centena de versos escritos em hebraico antigo. Trata-se do único exemplo de poesia secular da literatura hebraica antiga que sobreviveu até aos nossos dias (Bloch& Bloch, 1998, p. 29). O cenário predominante no texto é onírico e fantasioso (Carr, 2003, p. 125), sendo por vezes difícil separar o que se propõe como realidade dentro da obra e o que representa a imaginação das vozes no poema (Bloch& Bloch, 1998, p. 15). As formas poéticas tornam a linguagem do texto compacta e concentrada em metáforas e metonímias, o que frequentemente obscurece o significado de diversas expressões e mesmo passagens inteiras. Por se tratar de um livro ao qual se agregou valor religioso, trata-se também da sexualidade conforme vista pela religião contemporânea que o adotou no seu cânon, assim como do processo possivelmente efetuado durante essa adoção quanto ao enviesamento interpretativo e à atribuição autoral. Não se visa aqui a produção de uma nova tradução, mas a comparação e o comentário das escolhas tradutórias nas obras selecionadas. Constatou Frye (1983, p. 53) que qualquer livro que se queira dizer ou tenha sido reputado por sagrado se envolve intrinsecamente com as condições linguísticas que caraterizam a poesia. Essas condições são explicadas por Jakobson (2007, p. 127) como consequência de um “pendor para a mensagem como tal”, a que se pode chamar função poética, esta que é partilhada tanto por poesia como por religião. É compreensível, destarte, que os livros que vieram a figurar no cânon sagrado tenham sido lidos, ao longo da sua longa história exegética, em três diferentes graus de polissemia (Frye, 1983, p. 221-223). O primeiro destes níveis, a leitura literal, interpreta os textos pelo seu valor nominal. No segundo nível, predomina a leitura alegórica, na qual se abstrai do nível mais mundano um significado velado, por vezes místico, que enriquece o texto semioticamente e lhe dá matizes de relevância. O terceiro nível é aquele que deduz do segundo um ensinamento moral que deve ser levado para a vida prática do fiel. O Cântico dos Cânticos não é exceção. De fato, pode-se dizer que todos os livros que hoje compõem a Bíblia, apesar de a maioria não ter tido uma intenção literária original, são ricos em recursos a figuras de linguagem (Frye, 1983, p. 53-54), e nuanças metafóricas e metonímicas possivelmente de diferentes graus (pp. 220-223) que foram e são largamente exploradas nos níveis interpretativos acima citados. Mas, como assinalava Renan na introdução da sua obra (1861, p. 1), não foi necessariamente pela dificuldade da linguagem que as passagens do Cântico dos Cânticos foram muito diversamente interpretadas ao longo dos séculos. A leitura literal, tendo sido relegada a segundo plano em prol da alegoria, via de regra calcada na dimensão metafórico-metonímica do texto, seria posteriormente obliterada a fim de auferir uma leitura moral. As diferenças entre as numerosas interpretações em cada um desses níveis são completamente diferentes.