O político nas imagens de A missão de Heiner Müller e O homem que era uma fábrica de Augusto Boal
Dramaturgia; leitor emancipado; literatura menor; político na imagem; teatro do oprimido; teatro pós-dramático.
Augusto Boal (Brasil) e Heine Müller (Alemanha) são teatrólogos do século XX que viveram em países e contextos evidentemente distintos. Contudo, com a crise do teatro burguês e das condições de legitimidade do regime de produção deste teatro, ambos apresentam pontos de contato em suas linhas e vetores teatrais que, diante da questionável universalidade da dramatização, levam à concepção de um teatro múltiplo e perturbador da ordem do sensível. Os processos de encenação contemporânea exigem uma ultrapassagem do sentido do político, desviando do jogo de representações sociais, para dar lugar ao trabalho desconstrutor de imagens como cisão entre a palavra e o representado, entre o legível e o visível. Em face do exposto, as escritas cênicas e, por isso mesmo, literárias desses autores, lugares de singularização – não sem paradoxos – capazes de mobilizar manifestações e impasses quanto às imagens que organizam ou desorganizam os textos dramáticos, trazem para a contemporaneidade tensões que levam o próprio teatro tanto a se interpelar, quanto, em sua força plural, a encontrar passagens para o novo. Trazer à superfície aspectos políticos nas imagens dos textos dramáticos, considerando-os na sua inscrição literária: “A missão: lembranças de uma revolução”, de Heiner Müller, e “O homem que era uma fábrica”, de Augusto Boal, faz-se um desafio, uma vez que as imagens pretendidas são aquelas com formas ou materialidades ainda não visíveis na cena, poderíamos dizer, em estado virtual. Como imagens pensantes, elas acontecem no plano de imanência da linguagem (Deleuze e Guattari). Sendo o “político” uma perturbação no sensível, contrário à política (Rancière), a dramaturgia se abala em multiplicidades, deslocando e desnaturalizando as funções de autor/dramaturgo e leitor/ator, teatro/literatura. Dramaturgia simultânea, imagem, fragmento e colagem mostram-se como procedimentos artísticos e literários criativos que se encontram apropriados seja na teoria do teatro do oprimido (Boal), seja no teatro pós-dramático (Hans-ThiesLehmann), embora, ao confrontá-las, elas sobressaiam em desentendimentos: a primeira coincide com a lógica da identidade e a segunda, esta se desarticule, movida pela diáfora, contestação, ou desacordo. Tais relações - não apriorísticas- sucedem-se enquanto acontecimento da leitura ou da leitura como acontecimento em que o político nas imagens dá-se, antes, nas lacunas e obscuridades, acenando para o que está além do sentido, da cena do gesto e da palavra. O leitor não para para atribuir sentido, interroga-se diante das metamorfoses e formas obliquas de acontecimentos insuspeitos que compõem o político estabelecendo o agenciamento coletivo da enunciação. Neste caso, o texto de Boal e o texto de Müller inscrevem-se na produção de uma literatura menor, ou de um teatro menor, o que os qualifica como agentes de devires revolucionários, agitando, através da política nas imagens, e irrompendo contra o problema do poder nas artes.