A feira-livre como espaço de aprendizado de saberes da tradição
Feira-livre. Saberes da tradição. Universalidade. Resiliência.
Este trabalho problematiza constelações criativas de saberes marcados por múltiplas subjetividades em um espaço singular das cidades: a feira-livre. Lugar de trocas financeiras, mas também afetuais, simbólicas e míticas, esse espaço se mantém ao lado dos lugares comerciais assépticos e climatizados como são os supermercados e hipermercados dos espaços urbanos e das metrópoles. As feiras, por seu caráter itinerante e seus personagens nômades modernos, são capazes de suscitar múltiplas observações, divagações, afecções e construção de conhecimentos. É um espaço marcado por estratégias organizativas e vivenciais de seus atores em diferentes situações geográficas do globo que, em nível local garantem a diferenciação em relação a outros grupos, mas que, em uma escala mais afastada, vinculam-se a processos gerais mais amplos que a tornam universal. Na feira livre do bairro do Alecrim na cidade de Natal-RN/Brasil, principal contexto de referência empírica desta pesquisa, em meio a tantos estímulos mobilizadores dos órgãos dos sentidos – em virtude dos múltiplos odores, sabores, cores, texturas e sons que dela emana – salta aos olhos o elevado contingente de crianças e adolescentes exercendo as mais diversas atividades laborais. Sabemos que no Brasil esse tipo de prática foi historicamente sinalizada e enquadrada por proibições e vetos chancelados por leis nacionalmente instituídas. Nesse sentido, é importante aclarar que não há neste estudo nenhuma pretensão de negar a existência ou desclassificar a importância de tais convenções e regras que foram formalizadas em um turbulento processo histórico, fruto de lutas e ideais de diversos grupos. Dessa maneira, por meio de um exercício estratégico de método que ultrapassa as amarras homogeneizantes do discurso oficial instituído de proibição, negação e erradicação de todas as formas de trabalho infantil, nos propomos a esgarçar tais chancelas discursivas após percebermos outros modos de fazer e ser desses meninos e meninas da feira. Deparamo-nos com uma caótica e pulsante sala de aula ao ar livre na qual se constrói permanentemente saberes mais próximos de uma lógica do sensível, expressão cunhada por Claude Lévi-Strauss. Em outras palavras, trata-se de um laboratório de construção de um conhecimento pertinente, como quer Edgar Morin, ou seja, aquele que religa o fenômeno e seu contexto e não opõe manipulação e tempo real de aplicabilidade dos saberes construídos. Nessa escola sem muros, portas, janelas, quadros-negros ou programas, os saberes da tradição (ALMEIDA, 2009) são experimentados e compartilhados por crianças e adolescentes que convivem diuturnamente com um tipo de troca de bens e palavras em permanente construção. Nas bancas da feira e para além delas encontramos sujeitos híbridos (LATOUR, 2000) que se estruturam por meio de mecanismos capazes de fazê-los navegar nas incertezas caóticas de suas vidas. Seres resilientes, porque não? Os aprendizados da feira foram ou são as fagulhas de resiliência desses sujeitos aparentemente encarcerados no conformismo como fatalidade última, portadores de histórias grávidas de simbologias tristes e felizes que expõem a face de um humano em permanente combustão, construção e incerteza.