Jogos do mar-alto: os pescadores, as técnicas e os seres marinho
Coletivos Pesqueiros, Processos técnicos, Relações humano-animal.
O mar é o palco de uma das relações mais complexas da sociedade-natureza: o encontro
possível através da mediação técnica pesqueira entre homens e seres marinhos.
Diferentemente do que supõe a ontologia naturalista – onde sociedade e natureza formam
conjuntos opostos –, da qual nós ocidentais somos herdeiros, o mar é o espaço onde homens,
artefatos técnicos e animais formam plenamente um coletivo. A partir da pesquisa
bibliográfica e da experiência empírica do autor sobre coletivos pesqueiros, percebeu-se no
universo da pesca potiguar a existência da metáfora nativa jogo, cujo conteúdo expressa o
encontro entre homens e seres marinhos na luta pela sobrevivência diária. Esta categoria
expressa um sistema de relações que compreende humano-técnica-animal, operacionalizada
por duas condições que, etnograficamente, chamamos de perícia-técnica e moral-técnica.
Ambas categorias são experimentos conceituais nossos, construídos a partir da interlocução
com os pescadores interlocutores da pesquisa. A primeira diz respeito ao domínio do conjunto
das técnicas de pesca – tradução do repertório extenso de conhecimentos construídos sobre o
mar, transmitidos através da oralidade e, principalmente, pela educação dos corpos. A
segunda diz respeito à regra para a predação, consiste no uso de técnicas que não eliminam
totalmente as possibilidades de ―vitória‖ do pescado, ou seja, a sua escapatória. Desta forma,
Jogar com o peixe expressa a subjetivação dos seres marinhos, o reconhecimento da
capacidade de ação destes e a ruptura com a oposição sujeito-objeto. Saber jogar, em termos
êmicos, significa operacionalizar concomitante as duas noções anteriormente citadas, o que
confere ao pescador prestígio social em seu agrupamento. Contudo, as relações com o mar e
com os não-humanos são diferentes entre os pescadores da pequena pesca e os pescadores
empregados em companhias industriais. Tal distinção é reforçada constantemente nos
discursos dos trabalhadores da pesca, entre estes, os pescadores artesanais do município de
Caiçara do Norte (localizado no litoral norte do Estado do Rio Grande do Norte) e os
pescadores assalariados de Natal (capital do mesmo Estado). De um modo geral, os
pescadores artesanais alegam que os pescadores assalariados/embarcados não jogam com
peixe. Pelo exposto, o objetivo deste estudo é partir da noção de jogo e desdobrá-lo para
compreender aspectos mais gerais da relação entre humanos, coisas e animais no segmento
artesanal e industrial da pesca potiguar. Para tal, investimos no engajamento nos processos
técnicos de ambos os segmentos como método de pesquisa e em uma abordagem etnográfica
multiespécies para a compreensão da convivência e cooperação entre homens e seres
marinhos.